data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Renan Mattos (Diário)
Um grupo de mais de 80 jovens sobreviventes do incêndio da boate Kiss criou o coletivo ExpreCidade. Com a aproximação do júri, que começa em 1º de dezembro, em Porto Alegre, a intenção do grupo é criar um fortalecimento psicológico no período de julgamento dos réus do caso. O nome remete à cidade de Santa Maria e sua tradição ferroviária: o "Expresso" era sinônimo de "Locomotiva". O termo também passa a ideia dos trilhos e histórias que se cruzaram desde a tragédia, e de se expressar enquanto cidade.
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- É inevitável a enxurrada de informação que vamos receber. Eu gostaria de ter um espaço seguro para dividir meus medos, anseios, receios ou até mesmo para ficarmos quietos juntos. Não vai ser fácil para ninguém - explica o criador do grupo, o psicólogo e sobrevivente Gabriel Rovadoschi Barros, 27 anos.
A partir do encontro dos sobreviventes, diversos relatos das lembranças da noite de janeiro de 2013 foram surgindo. Com isso, o grupo lançou um manifesto intitulado de "O 27 que vive em nós: uma carta expressa" (veja abaixo a íntegra da carta).
- É um pedido de solidariedade e reconhecimento - destaca Gabriel.
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Em um trecho do manifesto, os sobreviventes falam sobre os sentimentos que os acompanham até hoje, quase nove anos depois do tragédia:
"Convivemos com a sensação de impotência por não ter conseguido salvar nossos amigos, por ter que presenciar a dor dos pais, irmãos e demais familiares. Por muitos anos carregamos a culpa por termos sobrevivido enquanto outros 242 jovens morreram. Diariamente buscamos racionalizar para nos desculparmos daquilo que jamais tivemos culpa - a culpa dos responsáveis", diz trecho da carta.
Em outra parte do documento, o grupo manifesta contrariedade com o que chama de "vitimização dos réus no período pré-julgamento", qualificada como uma manobra "extremamente violenta conosco".
"Houve causas e devidas consequências para os riscos assumidos pelos responsáveis. Nós, literalmente na pele, comprovamos isto. Desejando ou não, querendo ou não que a tragédia ocorresse, famílias foram destruídas, vidas ceifadas, traumas adquiridos para a vida toda. Finalmente, quase nove anos depois, o julgamento irá acontecer. Pedimos solidariedade, respeito e empatia com a nossa dor e com a dor dos familiares", afirma o grupo.
Alguns sobreviventes gravaram a leitura da carta com o celular. O vídeo, que foi editado pelo produtor editorial André Polga do grupo "Kiss: Que Não se Repita", deve ser lançado nesta sexta-feira. A expectativa é que alguns jovens acompanhem o julgamento em Porto Alegre. No grupo, há também testemunhas que vão depor no júri.
Confira a íntegra da carta:
O 27 que vive em nós: uma carta Expressa
Nós, os sobreviventes da Kiss - assim chamados por toda sociedade - carregamos a trágica noite de 27 de janeiro de 2013 todos os dias. Diariamente, precisamos lidar com lembranças que irrompem durante o dia a dia, queimaduras, pulmões comprometidos e esse sentimento de impunidade passados quase nove anos.
Todo dia, precisamos lutar contra flashes da noite que mudou as nossas vidas. Ainda lembramos, como se fosse ontem, dos gritos, do cheiro insuportável da fumaça, do calor que sentimos enquanto a boate estava em chamas e daquele empurra-empurra em que todos buscávamos por uma só saída.
Não tem como "lembrarmos da boate como era antes". Nós fomos marcados para sempre e levaremos isso pelo resto de nossas vidas. Não temos a alternativa de não querer lembrar da tragédia porque somos a lembrança viva da noite que nunca teve fim.
Muito se fala que os réus não queriam matar ninguém, mas agora lhe perguntamos: "Quem de nós sairia de casa numa noite de verão para morrer ou sobreviver àquele horror tendo que conviver com sequelas físicas e psicológicas permanentes?". Fomos emboscados pela ganância, pela irresponsabilidade e pela crueldade daqueles que deveriam prezar pela segurança e pela vida, que assumiram o risco de superlotar o local, além da utilização de sinalizadores que não eram indicados para aquele tipo de ambiente, que parecia já ser tradição naquela boate. As figuras que deveríamos confiar são, hoje, referências do nosso temor, fruto de insegurança e desconfiança as quais lutamos diariamente para contornar e tentar olhar para o amanhã.
Convivemos com a sensação de impotência por não ter conseguido salvar nossos amigos, por ter que presenciar a dor dos pais, irmãos e demais familiares. Por muitos anos, carregamos a culpa por termos sobrevivido enquanto outros 242 jovens morreram. Diariamente, buscamos racionalizar para nos desculparmos daquilo que jamais tivemos culpa - a culpa dos responsáveis. A vitimização dos réus no período pré-julgamento, uma manobra covarde e extremamente violenta conosco, só nos mostra que os responsáveis só são vítimas deles mesmos. Houve causas e devidas consequências para os riscos assumidos pelos responsáveis. Nós, literalmente na pele, comprovamos isso. Desejando ou não, querendo ou não que a tragédia ocorresse, famílias foram destruídas, vidas ceifadas, traumas adquiridos para a vida toda.
Finalmente, quase nove anos depois, o julgamento irá acontecer. Pedimos solidariedade, respeito e empatia com a nossa dor e com a dor dos familiares. Sabemos que cada um dos réus quer defender seu lado e/ou mudar a versão dos fatos, mas isso não deve ultrapassar os limites éticos e, principalmente, de respeito. Que cada um assuma sua responsabilidade no que aconteceu no dia 27 de janeiro de 2013.
A dor continua, o medo continua, a desconfiança naqueles em que deveriam nos garantir o direito à segurança continua. Esta carta é um manifesto de que nossa dor não pode ser silenciada:
"Chorei por lembrar que tudo isso aconteceu e foi um longo processo pra passar um dia sem que o 27/1/2013 definisse o que eu faço."
"Eu faço terapia até hoje, algumas vezes ainda reaparecem esses sentimentos. Minha psicóloga diz que essa cicatriz que temos, muitos física e outras só no coração e na memória mesmo, são parte da gente, mas não a gente por completo. Esse acontecimento está na nossa história, mas não somos só ele."
"Até hoje tem gente que me fala que essa dor é mimimi"
"Eu já ouvi que eu não tinha cara de sobrevivente"
"Ainda sinto uma espécie de culpa, dívida com os familiares de quem morreu"
"Cheiro de fumaça me dá gatilhos que não suporto"
"Também tem aquela pessoa que recém te conhece e descobre que você mora em Santa maria e já vem falar sobre assunto, sem ao menos ter o tato de perguntar se você se sente bem em falar ou se quer ou não"
"No meu caso fiquei com toc com fogão, eletricidade, com qualquer coisa que possa pegar fogo ou explodir... Perco muito tempo conferindo se o fogão está
desligado, se está tudo desligado (Muito tempo mesmo, faço isso várias vezes). Tenho muita ansiedade desde aquele dia e sempre com medo que vá acontecer algo. E em relação ao som de ambulância e bombeiros também tenho muita ansiedade".
"Nos primeiros meses eu não acreditava que estava viva. Minha vertente espírita me levava a acreditar que eu tinha morrido mas não estava aceitando a morte, isso foi enlouquecedor. Não conseguia entender porque eu tinha me salvado e tantos outros não. Até hoje eu não entendo. O pesar pelas pessoas que não sobreviveram é constante, assim como o medo, o trauma com tudo que possa remeter àquele dia (fumaça, sirene, aglomeração). Isso nunca vai ser tirado de nós."
"A dor, a culpa e a saudade sempre vão estar entre nós sobreviventes. E se eu tivesse salvado mais vidas... E se eu não tivesse ido.. E se eu não tivesse convidado meu amigo.. Isto é algo que tenho que conviver todos os dias da minha vida. O que não podemos conviver e com esta perseguição como se tivéssemos culpa de estarmos lá. Até repressão por bombeiros em uma festa que fui aconteceu, como se eu fosse culpado de falar a verdade que ocorreu naquela noite."
Uma carta da ExpreCidade